Minha viagem anterior, amigos, a bordo da minha querida canoa à vela e a remo “Estrela d’Alva”, durou 14 dias, durante os quais fiz muitas escalas e na verdade passei apenas um dia e duas noites em Arraial do Cabo. Duas noites duras em que Éolo soprou com vontade de potência vindo de SE/SW. Se a âncora Bruce de dois quilos, fortalecidos por três metros de corrente, da “Estrela” garrasse, eu não teria condições de remar contra aquele pequeno tufão. Às vezes em que as rajadas mais fortes me acordavam, eu olhava por um dos agulheiros, da nova barraca, que eu e meu colaborador Aguavel* confeccionamos e via um curioso espetáculo. Uma porção de barcos correndo uma estranha regata noturna, mergulhados em denso nevoeiro e às vezes aspergidos por uma pancada de chuva. A ida pra Arraial foi arriscada e a volta idem.
- A coisa tá feia fora da garganta de pedra do Itajurú, Estrela.
- Acho não, a MAR está deserta de carneiros.
- Sim, tem razão, mas já olhou pro céu?
- Já. Qual o problema?
- Tudo cinza!
- Você tem alguma coisa contra a cor cinza?
- Contra a cor cinza nada Estrela... Mas veja aquela imensa nuvem de chuva cinza-escuro pros lados de Massambaba...
- Põe tudo em cima que consigo chegar a Arraial antes dela.
- Tem certeza?
- Absoluta.
- E se o vento virar?
- Vira não.
- E se o vento refrescar?
- Refresca não!
- E se a MAR encapelar?
- Encapela não.
- Parabéns, você é a canoa mais otimista do mundo, Estrela!
- Obrigada.
- E aí vamos ou não vamos?
- Mas é claro que vamos!
Quando chegamos no través da Prainha, na entrada de Arraial do Cabo, amigos, a nuvem de chuva que pairava sobre Massambaba tornou-se quase negra. O chapéu cinza-claro da ilha de Cabo Frio agigantou-se. As ondas começaram a crescer de tamanho. Outras nuvens de chuva começaram a pipocar aqui e acolá. O vento rondou e passou a nos assolar com inesperadas rajadas...
- Vamos voltar “Estrela”?
- Que nada. Já que chegamos até aqui, adiante!
- E se o temporal cair quando estivermos no través da Jararaca?
- Bem se isso acontecer, a gente só terá uma coisa a fazer.
- Qual?
- Rezar pra Santa Bárbara.
- Coitada de Santa Bárbara, Santa Bárbara está precisando que rezemos por ela.
O vento rondou de novo e passou a soprar justamente do ponto que queríamos atingir: a boca do estreito canal que separa a ilha de Porcos, da antipática ponta da Jararaca. As ondas cresceram um pouco mais e a “Estrela” começou a beber água salgada e a tossir. A luminosidade caiu rapidamente e a imensa nuvem de chuva, que de cinza-escuro tornara-se preta, aproximou-se perigosamente da praia dos Anjos...
- Não disse que era arriscado seguir em frente “Estrela”?
- Estou “com o osso entre os dentes”, não posso responder!
- Vamos nos ferrar “Estrela”!
- Madadayo! Tenha fé em Deus neu rei!
Quando passamos entre Porcos e Jararaca, Éolo nos deu umas três chibatadas, que quase emborcaram a “Estrela”. Depois fomos nos aproximando da praia dos Anjos aos trancos e barrancos e quando... acreditem se quiserem... quando eu pisei com o pé direito no primeiro cais de Arraial o dilúvio desabou. Amarrei bem a Estrela pela popa depois de ter lançado o ferro pela proa e corri pra padaria.
Depois de tomar um bom café com pão e manteiga e consultar a previsão do tempo, na lan mais próxima, voltei ao cais e a “Estrela” estava toda adernada pra boreste, por causa do peso da água da chuva, acumulada em apenas uma hora.
A primeira noite foi agitada, vento forte com freqüentes rajadas, pancadas de chuva, frio e nevoeiro. Para meu desconforto a “Estrela” passou a madrugada dançando e cantando a "Macarena" junto com os outros barcos:
"Dale a tu cuerpo alegria Macarena
Que tu cuerpo es pa' darle alegria y cosa buena
Dale a tu cuerpo alegria, Macarena
Hey Macarena"
Mas na noite seguinte Éolo ensandeceu e ela passou a dançar e cantar a Conga.
"Conga la conga
Conga conga conga
Oh, i like dancing everydays
Oh, you and me
All the times
El conga la conga quiero bailar"
É amigos, a Região dos Lagos/Costa do Sol é linda. Linda e ao mesmo tempo inóspita. Mas o pior de tudo ainda não contei. A praia dos Anjos está se tornando a praia dos Demônios. Porque? Por causa dos navios e rebocadores, cada vez maiores, cada vez mais numerosos, cada vez mais assíduos, circulando ruidosamente num dos braços de MAR mais formosos da costa brasileira, a qualquer hora do dia ou da noite. Algo comparável a uma oficina auto-mecânica funcionando full time no alto do morro do Pão de Açúcar. Tem cabimento?
Ah, ia esquecendo de contar uma novidade, que deve aliviar meu amigo Fabio Collichio, que jamais admitiu que eu comesse comida fria a bordo da “Estrela d’Alva”, coisa que venho fazendo há quase quatro anos, com exceção da primeira aventura mais longa, que tentei realizar em 2004. Naquela ocasião levei um fogão a gás, cujo botijão me foi emprestado pelo meu fiel colaborador Aguavel*. Logo após abandonei a idéia de acender fogo a bordo, por falta de espaço e amor à segurança. Mas depois de ler os relatos de volta ao mundo, em solitário, do Slocum, do Moitessier e do Belov, decidi resgatar o privilégio/prazer da comida quente.
Orientado pelos meus amigos LowTech Humphrey e Maud, do inventado trimaram TRP, comprei um fogareiro a álcool, que enchi de fibra de vidro e fiz a festa durante essa última viagem. Tomei chá de camomila quente, sopa quente de cebola, de ervilha com bacon, de batata, mais um incrementado rizotto de atum.
Tudo bem agora, Fabio? Qualquer dia desses vou lhe convidar pra comer um bom ranguinho quente preparado por mim a bordo da Estrela. Topa?
Extrato da newsletter nº 19 de 2 de novembro de 2008 - projeto "Estrela d'Alva"
Não sou "do mar", mas me rendo a seus cantos e encantos. O mar de Arraial é o encantador mor, perfeito em tudo... lindo demais. Até as tempestades na Baleia!! Adorei seu post... Abraço.
ResponderExcluirTem razão Anônimo, o MAR, que eu e os franceses chamamos de a MAR é mesmo o máximo. Obra-prima da mãe-natureza! Berço e garantia de vida de todos os seres vivos do planeta. Pena que vem sendo poluída, corrompida, envenenada dia a dia pela doida raça humana. Em breve a MAR morrerá e com ela todos nós. Mas enquanto essa tragédia não acontece e enquanto eu tiver coragem, continuarei a velejar na paradisíaca Costa do Sol a bordo da minha querida "Estrela d'Alva", a canoa alada. Obrigado pela visita e volte sempre que desejar.
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