56° dia
Vendée Globe
perdeu o veleiro, a vida e o corpo
Décimo sexto abandono. O velejador Jonny Malbon do “Artemis”, belo nome, acaba de jogar a toalha. Motivo? Concomitância de probemas técnicos diversos: perda da bolina de boreste, causada pelo choque com uma baleia ainda no Atlântico, dificuldade de recarga de baterias, vela grande em frangalhos. Precisa mais?
Bom dia amigas e amigos!
Imagino que se o amigo velejador acabou de se inscrever neste importante forum, deve estar se perguntando porque eu, Fernando "Estrela d'Alva" Costa, o maluco da canoa alada, me dou ao trabalho de escrever este longo diário sobre a Vendée Globe, que ninguém lê. Nós brasileiros detestamos ler. Nós brasileiros engolimos remédio sem ler a bula. Não é verdade?
Mas sua pergunta procede, amigo, e eu vou responde-la.
Pra começo de conversa escrever este diário não constitui trabalho pra mim e sim lazer, diversão, prazer. Se fosse trabalho já teria
jogado a toalha. Escrever a trabalho é a pior coisa desse mundo. Conheço a experiência. Aliás a melhor coisa do mundo, torna-se insuportável, se feita a título de trabalho. As prostitutas que o digam. Quanto à sua pergunta, leitor amigo, já a respondi anteriormente, mas custa nada repetir, pra evitar as más interpretações, que são a véspera do desastre. Meu principal objetivo, escrevendo este diário, é aprender a velejar com os cascudos marujos da Vendée Globe.
Que eu saiba, 50% de tudo que nós sabemos, aprendemos fazendo, 30% vendo e os restantes 20% ouvindo, lendo e escrevendo.
Se você desejar aprender tanto quanto eu sobre a vela em solitário, em vez de me ler, escreva sobre a Vendée Globe, amigo leitor.
Talvez valha a pena você me ler antes de escrever, só porque metade do que escrevo, é produto do que leio, ouço e vejo no excelente site da Vendée Globe. http://www.vendeegl obe.org/fr
A outra metade é fruto do meu romântico bestunto. Essa metade pode desprezar que não me ofendo, até porque o romantismo já foi destronado pelo pragmatismo há muito tempo. Embora... embora... nenhuma escola, com o perdão da palavra, tenha feito tanto sucesso junto à população mundial quanto o romantismo.
Ahhh... eu adoro escrever, amiga leitora, porque escrevendo, a gente goza quase que da mesma infinita liberdade de velejar.
A mar não possui estradas e a folha de papel real ou virtual, registra o que nos der na telha, sem a mínima censura. Quanto à liberdade de divulgar o que escrevemos.. . vai depender...
Entendeu porque me dou ao prazer de escrever este diário amigo leitor? Não? Compliquei demais? Que tal um resumo?
ESCREVO ESTE DIÁRIO SOBRE A VENDÉE GLOBE PRA APRENDER A VELEJAR EM SOLITÁRIO.
Faça o seguinte teste amigo leitor. Sente-se diante de uma foto predileta e escreva umas três páginas sobre ela. Você vai se convencer de que escrever incorre em aprender. Se não tiver outra foto à mão, escreva sobre esta aqui, de um dos maiores fotógrafos de todos os tempos e lugares, mestre André Kertész. A foto foi feita em 1944, no Central Park de Nova Yorque.
Dito isso gostaria de partilhar com você uma das grandes lições que aprendi, acompanhando até o presente, esta movimentada 6ª edição da Vendée Globe:
Quando você sofrer um revés na mar, jamais se lamente da sorte.
Porque? Simplesmente porque poderia ter sido bem pior.
Nada melhor que três exemplos pra sublinhar uma lição.
> O Vincent Riou que torceu o tornozelo em 3/12/2008 passou duas semanas capengando, trocando as velas de joelhos, se lamentando e pensando que se tratava do velejador mais infeliz do mundo, até que chegou a notícia da fratura do fêmur do Yann Eliès em 18/12/2008.
>> O Bernard Stamm estava se sentindo o velejador mais infeliz do mundo, após ter seu open 60 jogado sobre as pedras das ilhas Kerguelen em 13/12/2008, até que soube que o “Generali” do Yann Eliès havia provavelmente naufragado em 26/12/2008.
>>> Durante a terceira edição da Vendée Globe, 1996/1997, Raphaël Dinelli, Thierry Dubois e Tony Bullimore estavam se sentindo os três velejadores mais infelizes do mundo após terem capotado e perdido seus veleiros na mesma tempestade, até que se soube que o Gerry Roufs além do veleiro havia perdido a vida mais o próprio corpo. Ou seja Gerry Roufs e seu veleiro desapareceram no mar pra sempre. Do veleiro foram encontrados, muito tempo depois, alguns destroços. Do velejador absolutamente nada. Fatalidade que também acometeu meu amigo Antoine Duguet nas imediações do famigerado cabo Horn, do qual o professor Desjoyeaux se aproxima neste exato momento, seguido pelo Roland Jourdain, que resolveu tirar fino do pedregulho mais perigoso do planeta. Eu se fosse ele seguiria o professor que está obedecendo o sábio refrão francês que reza: “Il faut arondir les caps!”
Portanto amigo velejador, não se lamente de um desastre sofrido na mar, enquanto você ainda estiver vivo, pois que todo desastre sofrido na mar poderia ter sido bem pior.
Bons ventos a todos e até amanhã se Deus quiser
Fernando “Estrela d’Alva” Costa
MOITESSIER DOBRANDO O CABO HORN
Quarta estrofe do "poema" em versos livres MOITESSIER DOBRANDO O CABO HORN que escrevi, utilizando metade das palavras do próprio Moitessier, em seu clássico “O LONGO CAMINHO” traduzido pela Carmen Ballot e publicado pelas Edições Marítimas. Espero que gostem.
parte 4
todo o buquê fulgura incandescente, exuberante.. .
macacos me mordam!
Deus ateou fogo no céu
diante dos meus olhos extasiados
todo o firmamento flameja, reverberando com a intensidade e a doçura do fogo
por cima do esbranquiçado clarão
reflexo das geleiras da Antártida mais ao sul.
uma grossa e escura cortina de estratos começa a fechar-se
eclipsam a lua
escondem as estrelas
apagam os raios
por favor, não!
roubam-me enfim a primeira e talvez última aurora boreal da minha pequenina grande vida
o espetáculo acabou
pena
quanto tempo levou?
sessenta segundos ou minutos?
meu relógio diz minutos, meu cérebro de macróbio humano diz segundos
o espetáculo acabou, mas o suspense continua
pois que o temível cabo Horn continua pela bochecha de bombordo do meu intrépido “Joshua”
a noite parece uma lagoa escura arrodeada de areia branca
a lua cheia nos espreita de quando em quando
por trás das nuvens de cerração
através das eventuais frestas da espessa parede de estratos
a mar arqueja prateada, brilhante
toda coberta de lâminas verdes fluorescentes
Netuna, suponho, quer me dizer algo, mas a névoa abafa-lhe a voz
a bombordo escondida nas trevas está a Terra do Fogo
a boreste, igualmente invisível e muito mais distante a Terra de Graham com suas eternas geleiras
pela proa, a ilha do Horn e seu longo colar de ilhotas e pedras rasas que já destroçaram o casco de centenas de barcos maiores que “Joshua”
pensar nisso aumenta, duplica, triplica meu medo
fazendo circular em torrentes a poderosa adrenalina
em meu sangue quente
a sensação é má e boa
o cabo Horn é o maior traficante de adrenalina
do planeta
e é só por isso, que nós, aventureiros, não sossegamos enquanto não passamos por aqui
todos fissurados numa overdose de adrenalina da boa!
toda droga em excesso mata
tudo em excesso mata
a morte sabe disso e freqüenta, desde sempre, os arredores...
“é a morte, essa carnívora assanhada
serpente má de língua envenenada
que tudo que acha no caminho come
faminta e atra mulher que a primeiro de janeiro
sai para assassinar o mundo inteiro
e o mundo inteiro não lhe mata a fome”
Augusto dos Anjos
( continua no próximo post )
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