Howard Blackburn - velejador solitário

Gostam do tunel do tempo amigos? Sim? Tanto quanto eu? Pois sejamos felizes. Mergulhemos todos no único tunel do tempo possível. O da nossa imaginação. Janeiro de 1883. Pode ser? Que tal a umas duzentas milhas da costa norte do Canadá? Pois bem, cá estamos nós navegando ao largo da ilha de Terra Nova, a bordo de um belo tres mastros à vela. E lá adiante vejam bem, que linda a escuna de pesca “Grace L. Fears”! Parecidíssima com a escuna "Dália", não? Querem saber o que ela está fazendo? Desovando no mar sua flotilha de uma dúzia de "doris". O "doris", amigos, é o irmão canadense da tradicional bateira à remo de dupla proa cabofriense. Lá vão eles, dois homens em cada barquinho à pesca do saboroso alabote, estranho e caro peixe, que tem ambos os olhos do mesmo lado do corpo. Pesca de linha. Pesca perigosa porque o clima dessa região é terrivelmente instável.

Howard Blackburn

Bem, se voces nao gostam de presenciar tragédias humanas sigamos viagem e deixemos esses pobres pescadores entregues ao seu terrível destino. Mas se querem saber, dentro de meia hora uma violenta tempestade de inverno irá varre-los. Anotem! Aumento repentino da velocidade do vento, chuva torrencial, neve, ondas colossais, nevoeiro e granizo. Consequência? Desespero, sofrimento, dor, muita dor, seguida de morte. Tom Welch e Howard Blackburn, dois dos pescadores, agarrados ao seu minúsculo "doris" serão perdidos pela escuna-mãe, por causa do nevoeiro. Tentarão alcançar a distante costa, remando desesperadamente contra o vento gelado. Tom Welch morrerá de frio no segundo dia de viagem.

Mas o nosso herói Howard Blackburn remará durante quatro dias e quatro noites consecutivas. Eu disse quatro dias sem comer, sem dormir e sem parar de remar. Sem comer, porque não havia o que comer a bordo, sem dormir, porque ele sabia que se dormisse morreria congelado, como morreu o seu colega Tom Welch, cujo cadáver ele transportou até terra firme. Inacreditável que um ser humano seja capaz de tamanha façanha. Eu me lembro de ter remado há dois anos atrás da praia da Ferradura, em Búzios, até a Praia do Forte, em Cabo Frio. Total de 15 milhas. Aproximadamente 30 km de percurso em mar-chão. Arhfff! Cheguei morto de cansado! Howard Blackburn remou mais de 200 milhas em mar revolto e chegou mais morto que vivo à margem. Sobreviveu a duras penas, mas não sobreviveu inteiro. Pagou um pesado tributo ao infortunio. Perdeu todos os dedos das mãos e dos pés. Que tragédia para um velejador perder todos os vinte preciosos dedos do corpo! Eu me lembro de ter machucado meu dedo médio durante uma das minhas mini-expedições marítimas e do quanto perdi em eficiência por conta disso.

- Pensam que ele desistiu do mar, após ter perdido, repito, todos os dedos das mãos e dos pés? De modo algum. Dentre outras façanhas atravessou duas vezes o Atlântico Norte em tempo recorde a bordo de veleiros sem convés. Por fim tentou por duas vezes atravessar novamente o Atlântico Norte a bordo de um "doris" à vela quase do tamanho da "Estrela d'Alva". A "Estrela d'Alva tem 4,86 m de comprimento por 1,30m de boca máxima, o "doris" do Howard tinha 5 m de comprimento por 1,50 m de boca máxima. Duas tempestades seguidas deram cabo dessa última pretenção do nosso super-homem. Mas não da sua corajosa vida de aventureiro contumaz. Só quero ver, se depois de ler essa estória, alguém ainda vai ter coragem de me chamar de maluco. Maluco, o maluco-mor e super-herói, amigos, foi Howard Blackburn, um dos primeiros, maiores, últimos e únicos velejadores solitários de todos os tempos e lugares.

Fernando Costa

Newsletter n° 2 de 24 de janeiro de 2008 - projeto "Estrela d'Alva"