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quinta-feira, 20 de julho de 2017

- La Jacressarde - "Os Trabalhadores da* MAR" de Victor Hugo - RELEITURA 5




Rio de Janeiro - foto de Fernando Costa


- Como já lhes disse estou relendo mais uma vez "Os Trabalhadores da MAR" de Victor Hugo, com tradução de Machado de Assis.

- Meu livro favorito quando o assunto é aventura MARítima.

- O protagonista desse extraordinário meta-romance, Gilliat é meu grande
guru.

- Porque?

- Porque trata-se do primeiro velejador solitário do mundo.

- E representa tudo que eu sempre quis ser.

- Algum de vocês que navegam sobre a divina* Mar, ainda não leu esta maravilha?

- Assunto desagradável...

- Relendo o sétimo capítulo do livro quinto, cheguei à desesperadora conclusão que o Brasil está tendendo pra uma enorme Jacressarde...

Leiam ou ouçam o extrato abaixo e tirem suas próprias conclusões.

- Detalhe eu fiz várias alterações no texto original que vocês poderão encontrar na providencial Wikisourse.

Fernando Costa

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OS TRABALHADORES DA MAR de Victor Hugo

LIVRO 5 - Capítulo VII - LA JACRESSARDE

LA JACRESSARDE

A Jacressarde era a habitação daqueles que não tem habitação.
Em todas as cidades, e especialmente nos portos de mar, há, abaixo da população, um resíduo. Vagabundos, aventureiros, vivendo de expedientes, químicos da espécie larápio, pondo sempre a vida no alambique, todas as formas do andrajo e todas as maneiras de vesti-lo, os jubilados da improbidade, as existências em bancarrota, as consciências culpadas, os que abortaram no assalto e no arrombamento de portas (porque os ladrões trabalham por baixo e por cima), os operários e as operárias do mal, os velhaquetes e as velhaquinhas, os escrúpulos rasgados e os cotovelos rotos, os tratantes chegados à indigência, os malévolos mal recompensados, os vencidos do duelo social, os famintos que foram devorados, os ganha-pouco do crime, OS MISERÁVEIS, na dupla e lamentável acepção da palavra, tais são os inquilinos.
Ali é bestial a inteligência humana. E o montão de imundícies das almas. Ajunta-se tudo aquilo a um canto, onde passa de quando em quando a vassoura policial. Em Saint-Malo esse canto era a JACRESSARDE.
O que se encontra nessas espeluncas NÃO são os grandes criminosos, os bandidos, os grandes produtos da ignorância e da indigência. NÃO, ABSOLUTAMENTE!
Se o assassino é representado ali, é por algum bebado brutal; ali o roubo não vai além da ratonice. É antes o escarro que o vômito da sociedade. O vagabundo sim, o assaltante não. Todavia não há que fiar. Aquele último degrau dos boêmios pode ter extremidades malvadas.
Um dia, lançando a rede no Epi-Scié, que era em Paris o que a Jacressarde é em Saint-Malo, a polícia apanhou ninguém menos que o famigerado Lacenaire.
Tudo entra naqueles albergues. A queda é um nivelamento. Às vezes a honestidade esfarrapada escoa-se por ali. A virtude e a probidade tem aventuras. Não se deve, à primeira vista, estimar os Louvres nem condenar as galés. O respeito público e a reprovação universal devem ser descascados. Quantas; surpresas não se dão! Um anjo no lupanar, uma pérola no monturo - não é impossível este sombrio e deslumbrante achado.
A Jacressarde era mais pátio que casa, e mais poço que pátio. Não tinha andares para a rua. A fachada era uma alta parede com uma porta baixa. Levantava-se o ferrolho, empurrava-se a porta, entrava-se em um pátio.
No meio desse pátio havia um buraco redondo, cercado de uma orla de pedra, ao nível do chão. Era um poço. O pátio era pequeno, e o poço era grande. Em roda do bocal do poço o chão era mal calçado.
O pátio, quadrado, tinha construções por três lados. Do lado da rua, nada; mas diante da porta, à direita e à esquerda, havia aposentos.
Quem, à noite, entrasse ali, um pouco arriscadamente, ouviria como que um rumor de respirações juntas, e se houvesse bastante luar ou estrelas, para dar forma aos lineamentos obscuros, eis o que veria: O pátio. O poço. Em roda do pátio, em frente à porta, uma palhoça figurando uma espécie de ferradura quadrada, galeria carunchosa, toda aberta, com teto de vigas, sustentada por pilares de pedra desigualmente espaçados; no centro, o poço; à roda do poço, em uma liteira de palha, e fazendo como que um rosário circular, viam-se solas de sapato umas direitas, outras acalcanhadas, dedos aparecendo pelos buracos dos sapatos, e muitos tornozelos pus, pés de homem, pés de mulher, pézinhos de criança. Todos esses pés dormiam.
Depois desses pés, penetrando o olhar na penumbra da palhoça, distinguiam-se corpos, formas, cabeças adormecidas, prolongamentos inertes, farrapos de ambos os sexos, uma promiscuidade no monturo, um sinistro jazido humano. Era um quarto de dormir para todos. Pagavam-se 2 soldos por semana. Os pés tocavam no poço. Nas noites de tempestade, chovia sobre os pés; nas noites de inverno, caía neve sobre os corpos.
Quem eram aquelas criaturas? Quem sabe?  Anônimos desconhecidos. Iam ali de noite e saíam de manhã. A ordem social anda misturada com aquelas larvas. Alguns esgueiravam-se ali de noite e não pagavam. A maior parte entrava em jejum. Todos os vícios, todas as abjeções, todas as suposições, todas as misérias, o mesmo sono de prostração no mesmo leito de lodo. Os sonhos de todas essas almas faziam boa vizinhança. Fúnebre entrevista em que se remexiam e se amalgamavam no mesmo miasma os cansaços, os desfalecimentos, as borracheiras incubadas, as marchas e contramarchas de um dia inteiro sem um pedaço de pão, sem um bom pensamento, sem uma palavra amiga, as noites lividas e sonolentas, remorsos, cobiças, cabelos imundos, rostos com o olhar da morte, beijos, talvez, das bocas da treva. A podridão humana fermentava naquela tina. Eram atiradas àquele albergue pela fatalidade, pela viagem, pelo navio chegado na véspera, por uma saída de prisão, pelo acaso, pela noite. O destino vazava ali, todos os dias, a sua alcofa. Entrava quem queria, dormia quem podia, falava quem ousava. Era próprio para futricar. Todos se apressavam em misturar-se. Tratavam de esquecer-se no sono, visto que não podiam perder-se na sombra. Tiravam à morte aquilo que podiam. Fechavam os olhos naquela agonia confusa que todas as noites começava. Donde saíam? Da sociedade, porque eram a miséria; da vaga, porque eram a espuma.
Nem todos tinham palha. Mais de uma nudez estendia-se ali no chão; deitavam-se estafados; erguiam-se anquilosados. O poço sem parapeito e sem tampa, sempre aberto, tinha 10 metros de profundidade.
Caía ali a chuva, escorriam para ali as imundícies, os escoamentos do pátio. A caçamba para tirar água ficava a um lado. Quem tinha sede bebia. Quem estava desesperado afogava-se.
Do sono do monturo passava-se ao sono do poço. Em 1819 tirou-se dali o corpo de um garoto de catorze anos.
Para não correr risco naquela casa era preciso ser da laia. Os estranhos eram mal vistos.
Conheciam-se acaso entre si aquelas criaturas? Não; farejavam-se.
A dona da casa era uma mulher moça, assaz bonita, trazendo um barrete ornado de fitas, lavada às vezes com água do poço e tendo uma perna de pau.
Desde madrugada esvaziava-se o pátio; iam-se embora os fregueses.
Havia no pátio um galo e algumas galinhas, que esgaravatavam no esterco durante o dia. O pátio era atravessado por um barrote horizontal, colocado sobre postes, figura de forca, que não estava ali em terra estranha. Via-se às vezes estendido no barrote, no dia seguinte às noites chuvosas, um vestido de seda molhado e enlameado, pertencente à mulher da perna de pau.
Acima da palhoça e circulando o pátio havia um andar superior e acima do andar um celeiro. Subia-se até lá por uma escada de madeira podre que furava o teto; escada vacilante por onde arrastava-se com estrépito a mulher coxa.
Os locatários de arribação, por semana ou por noite, moravam no pátio; os locatários residentes moravam na casa.
Janelas, nem um caixilho; portas, nem uma ombreira; lareiras, nem um fogão; era a casa. Passava-se de um quarto a outro indiferentemente por um buraco quadrado e comprido que fora porta, ou por uma fresta triangular que ficava entre duas pilastras do tabique.
A caliça caída cobria o assoalho. Não se sabia como aquela casa estava em pé. O vento não a abalava. Mal se podia subir pela escada gasta e escorregadia. Tudo estava aberto. O inverno entrava na casa como água em esponja. A abundância das aranhas tranqüilizava os moradores contra o desmoronamento imediato.
Mobília nenhuma. Dois ou três velhos colchões nos cantos, rotos no centro, deixando ver mais cinza que palha, aqui e ali uma bilha e um alguidar, servindo para diversos usos. Cheiro insípido e hediondo, insuportável. Tal era a JACRESSARDE!



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